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Foto do escritorNino

Estorvos e primaveras

Atualizado: 22 de mai. de 2020



Embora a primavera tivesse dado sinais do seu glamour ensolarado e charmoso, aquele dia 4 de setembro amanheceu nublado, úmido e frio. Nas ruas, todo cenário mudou de repente com alertas de sirenes, buzinas, rádios informando notícias contraditórias, pessoas gritando nas janelas dos carros e prédios e, de repente, aviões militares sobrevoando.

Era o golpe de estado militar encurralando o presidente. A gente ficou sem ação. Eram as incertezas batendo à porta, mal sabíamos que era o início de prisões, de busca de asilo, de muitos uniformes verdes autoritários. Caiam os amigos e os abrigos, a negatividade se impunha.

Para Nino, era difícil aceitar que terminava sua carreira acadêmica, não teria mais as alegres reuniões com o amigo Carlitos sobre a vida, as artes, e a política, ouvindo um contrabandeado álbum de João Gilberto, bebendo as companheiras “piscolas” e comendo a deliciosa comida da Blanca, sua mãe. Era cruel ter de deixar essa janela maravilhosa dos Andes nevados, abandonar seu querido bairro das muitas histórias e seus incondicionais amigos do “fute”, da U. de Chile, as piadas, os amorecos. Acionou seu plano B e foi embora a morar na enigmática Londres-Inglaterra. Nino nunca mais voltou ao seu bairro!

Foi atrás de importantes canudos nesse lugar maravilhoso, com muitas opções culturais, história e tradição. Por volta do College, e a sua disposição, os prédios majestosos, museus incríveis, o mágico Royal Albert Hall e o Hyde Park, dos belos cabelos loiros das lindas “nativas”.

Teve de entender e engolir a idiossincrasia dessa cidade e dos seus lânguidos habitantes de “sangue azul”. Logo de início, ficou sabendo que não passava de um sudaca, de um “Greasy Diego”, esses da pele obscura condenada a ser habitada por bactérias (segundo a linda inglesa Pip-outra história).

Já acostumado, a vida voltou a sorrir com o sol trazendo e matando saudade. Passou a ser feliz curtindo amigos de muitas raças diferentes, no especial Imperial College, seus famous professors, do tea break das 15h, da sua incrível torre no meio do pátio e seus concertos das quintas feiras, de olho nas bibliotecárias.

Em resumo, obrigado senhores militares, pelo convite a sair, ponto para nós.

Com muita festa e alegria chegaram a primavera e os formosos “canudos” e ficou uma bela “tese” construída na base do carinho pela vida e pelo profundo entendimento da ciência e o trabalho em grupo comunitário. Tinha, agora, de deixar para trás o encantamento do Kew Garden, dos Pubs, do incrível Speaker Corner, das óperas e concertos no Royal Albert Hall, dos incríveis museus e do Jazz-rock, underground, dos pubs e bares londrinos.

Se muda para New York State e logo Berkeley, dois lugares muito belos, fáceis de viver e com tudo a funcionar. Embora curtindo a beleza natural do país inteiro, não houve um amor recíproco com o “establishment” e decide voltar a América latina, para o sonho do Brasil novo, em construção.

Deixou para trás a força e a beleza das primaveras, das bibliotecas das Universidades, os blues e jazz jam sessions, os parques nacionais, e aqueles malucos lindos de New York, “Frisco” e Berkeley (de histórias mil).

Monta outra casa e se mimetiza no verde Brasil beleza. Integra-se na idiossincrasia local, diferente de Ibero América, volta a rir e curtir alegres momentos, tenta dançar samba, curte praias, viaja muito no país, mas prefere o frio gaúcho, a ginga local, toma chimarrão, faz bom trabalho de ensino e pesquisa, as universidades foram sempre suas casas. Aprendeu a utilizar a palavra Saudade, e custou um bocado a entender que era distinta à nostalgia ou "echar de menos" em español. Ficou feliz quando entendeu que era tudo o anterior mais um pouco a ver com a “qualidade” do sentimento que pode ir desde assuntos do cotidiano imediatista ao estrutural, ao caráter nutrido pela boa seiva.

De repente, como uma sina, o barulho e o estorvo das brumas, falaram mais alto. Acaba a alegria, volta a chuva na sarjeta e os energúmenos aparecem do nada, novos tempos, dizem. Se levanta um troglodita torpe demais, um bode na sala. A geração do novo milênio se agrupa e a massa consumista atropela como um desgovernado elevador e nada mais interessa, a não ser o poder.

É a simples dialética política que comanda estas mudanças ou fomos superados pelo avanço do irracional em um mundo globalizado?

Onde ficaram a cordialidade, o estado de direito, as relações democráticas harmônicas e o grau de liberdade?

Nino

Maio 2020

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